Penso que se tivesse havido bom senso em Paris, em Maio de 68, nós não estávamos aqui a falar do Maio de 68. Penso que a coisa interessante do Maio de 68 foi o mau senso. Não houve bom senso em lado nenhum. Vivendo em Paris, naquela altura, e vivendo ao pé do "Quartier Latin", ao mesmo tempo eu tinha um grupo com a Colette Magny e com o Paco Ibañez, íamos cantar onde nos chamassem, onde houvesse ocupação de fábricas. O ambiente que me lembro mais do Maio de 68, para mim, foi o ambiente vivido aqui logo a seguir ao 25 de Abril de 74, de euforia e de um grande sentido de liberdade, só com uma diferença, é que logo a seguir ao 25 de Abril toda a gente se abraçava e em Paris quase toda a gente atirava paralelepípedos à polícia. Foi a única diferença que vi.

A minha opinião é que o que acabou de ser dito é um bocado o que se passou, porque por mais voltas que se dê aquilo foi mais ou menos um movimento espontâneo que ultrapassou os partidos políticos e o movimento sindical, pelo menos no princípio.

Quando eu falo do bom senso é que de facto, quando lá estava, não havia bom senso possível a ter. Aquilo transformou-se numa coisa, que enquanto durava, durou. As pessoas estavam conscientes de que era uma posição que não se podia eternizar, um país completamente parado. Se eu fosse raciocinar politicamente, talvez tomasse posições mais críticas, mas como experiência humana foi das mais ricas que já tive na minha vida porque foi a única vez que eu vivi uma situação de total liberdade, em que a frase "é proibido proibir" fazia sentido. Ninguém se coibia de falar com quem quer que fosse... Chegava-se a qualquer lado e falava-se com todos.

Falar a 30 anos de distância, hoje, talvez não torne a coisa muito perceptível, mas de facto vivia-se um clima de mau senso que, sob o ponto de vista humano foi muito enriquecedor enquanto durou.

A comunidade portuguesa, como toda a gente sabe, era resultante de uma emigração económica. A maior parte dos portugueses que estavam em França eram pouco politizados, mas porque os portugueses também foram envolvidos pelas ocupações das fábricas, não há dúvida nenhuma de que também participaram. Depois os comités de ocupação pediam a mim, ou ao Paco Ibañez para irmos cantar para esses portugueses e irmos falar de outras coisas, como por exemplo, da guerra colonial.

Tenho impressão de que aquilo ao princípio foi um movimento de revolta estudantil, puramente, que tinha à frente alguns dirigentes com grande carisma, e nesse aspecto o Cohn-Bendit era de facto um orador extraordinário. Um mês antes de eclodir o movimento houve um debate na televisão com o Ministro da Educação - porque o Governo tentou fazer um debate com os estudantes pensando que ali, em 5 minutos, dava cabo deles - e de facto o Cohn Bendit arrasou-o de forma extraordinária. Creio que ele teve, nesse aspecto importância como líder estudantil.

Ao princípio, foi um movimento estudantil que acabou também por se radicalizar devido à brutalidade das intervenções da polícia. Creio que foi um movimento que foi crescendo e a partir de um determinado momento se expandiu por toda a sociedade.

Tenho a impressão que acabou com uma cisão nítida entre o movimento operário e o movimento estudantil. A partir do momento em que o movimento operário teve negociações com o governo, o movimento foi acabando.

À pergunta se alguma vez o Governo tremeu ? Acho que sim. Nós não podemos esquecer que o De Gaulle, num dado momento em Maio, foi para a Alemanha e esteve lá uns tempos.

E à questão sobre se o movimento se tivesse radicalizado não se podia ter ido para outra situação em França, penso que sim. Há uma fase em que o Estado e as forças repressivas perdem todo o controlo do momento que se vivia em França, mas o exército também não se envolve no lado contrário. O exército nunca mostrou que podia reprimir ou que podia actuar. Penso que o exército se manteve mais ou menos neutro durante aquele mês.

 

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Caixa de texto: Intervenção de Luís Cília, numa reflexão promovida pelo jornal "Avante", nº1277, sobre Maio de 68

Caixa de texto: 21 Maio 1998

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